Trechos anteriores>
A "mijada" - figura de linguagem chula demais para (perdôem-me a falta de modéstia) tão eloquente argumentação - respingou em todos. Houve os que já pensavam o mesmo de antemão; os que não haviam pensado a respeito e agora pendiam para a ideia há pouco defendida; e alguns que não concordavam de fato com a ideia de se lançar um livro, mas que tiveram suas convicções balançadas pela "bem fundamentada divagação". Ficaram impactados a ponto de demorarem alguns segundos a mais do que seria normal para que, enfim, abandonassem momentaneamente a reflexão do assunto à mesa e percebessem que eu estava estatelado no chão e precisava de uma mão para levantar.
Em outros tempos (ou com outras atmosferas anímicas), haveria até alguma jocosa e amigavelmente debochada risada ante o acontecido, mas as ideias expostas ainda estavam tomando a todos com alguma seriedade atraente, das que trazem frio à barriga e incerteza, das que suscitam vaidade, insegurança, vislumbre - tudo misturado - e que resultam em introspecção momentânea inabalável, mesmo em meio à multidão.
Fui ao banheiro com pouca ideia do que poderia ser feito com aquela calça molhada de cerveja - e que poderia ironicamente fornecer aos menos lúdicos um véu de literalidade à figura de linguagem "mijada". Restaram à mesa meus amigos a refletir, silentes, a despeito da batata gordurenta que esfriava em guardanapos de tom cinzento.
Alguns minutos depois todos voltavam a falar de amenidades da vida, cada vez mais atribulada para todos ali pelo passar dos anos. Surgiram uma e outra piada de tom despretensiosamente anarquista, com o espírito "no-future" estampado. Daí para alguma reflexão sobre o sentido da existência foi um pulo. Surgiu à mesa, como que esperando um parecer sobre originalidade por partes dos demais, a seguinte metáfora:
- Estamos andando em uma gigantesca esteira ergométrica. E a ideia mais sensata (entre as existentes), parece ser a de andar para frente. A esteira está ajustada, digamos, para a velocidade de 12 km/h. A pessoa nesta esteira consegue, mesmo que se esforce muito, mesmo que faça tudo certo, andar/correr a 10 km/h. Poderá se esmerar o quanto puder, construir o que for, se aprimorar, planejar... mas um dia, irremediavelmente, mais cedo ou mais tarde, será vencido pela esteira, não conseguindo acompanhá-la. E cairá.
Outro se manifestou, enveredando o sentido da conversa para o metafísico de forma provocativa.
- E quando se cai da esteira, se cai para o céu ou para o inferno?
Uma terceira pessoa toma a palavra, mudando mais uma vez o foco da conversa:
- Sobre Inferno, Céu... Sei lá, eu acho que o Diabo é o irmão mais velho - e de bom coração - de Deus. Pensem comigo: como Deus é "de menor", seu irmão benevolente assume todas as burradas e maldades que o caçula causa ou permite, sendo este consumido em sua eterna e "triônica" vaidade e autossuficiência. O Diabo, por sua vez, é condescendente com o irmão rebelde e incorrigível, pois o ama.
- Triônica?
- Sim, são três "onis": onipotência, onisciência e onipresença.
- Ah! hahahaha. Eu tinha isso antes de começar a faculdade.
- Acho que Deus permite tragédias para que os infelizes fiquem constrangidos em se queixar de suas vidas.
- Tu e tuas heresias! rs. Tu não és ateu?
- Agnóstico!
- OK, gente, prefiro falar sobre o quanto é bom ouvir "Searching" do Joe Satriani. Conhecem?
- Essa eu não conheço.
- Um orgasmo de 10 minutos!
- Hum... Eu conheço essa música. É boa e tudo... Mas tem muitas partes lentas e “desanimadas”, de modo que acho a analogia um tanto frágil.
- Já ouviu falar em Tantrismo?
- Rá!
Seguiram-se outros assuntos, piadas, divagações, trocadilhos infames, dentre os quais sobreviveram à ressaca do dia seguinte em minha memória as seguintes:
"A marcenaria do lado da minha casa entoa uma introdução eterna de "I Feel fine" dos Beatles."
"Viaduto é um pub pra pessoas 'diferentes'."
" 'O mecanismo da dor é imprescindível pois é um sinal do organismo de que há algo errado'. Ah, vai tomar no cu! Porquê não acende uma luzinha avisando? O sujeito com a mão decepada, já percebeu que a coisa é grave, e mesmo que trate terá que aguentar a dor um tempão!"
"Seria 'A Luz de Tieta' uma música com apoio de Caetano ao grupo terrorista ETA de forma subliminar? Ouçam o refrão..."
"Sou a favor de um Campeonato Mundial de gangues e grupelhos. KKK, Comando Vermelho, Ira, PCC, Hamas, Nazifascistas, skins, todos presos a confrontos eliminatórios, uns matando os outros, num reality show, para deleite dos espectadores."
"Quem não deve, teme sim!"
"Tenho medo do Abraão Winogron dizendo 'Venha!' "
"O que eu mais queria era dar um mosh na felicidade."
Da despedida dos amigos, na fria noite, lembro-me de ter acenado para todos com um maroto: "OK! Então comecem a selecionar seus textos pro livro!"
E entrei no ônibus iluminado, pensando se acordaria doente no outro dia por causa da calça molhada de cerveja, e que naquele inverno rigoroso secou a muito custo, ao longo do tempo em que desfilavam na mesa de plástico amarelo copos, pensamentos, azeitonas, infâmias, sanduíches, risadas e a noção de eternidade boa que a noite e a falta de obrigações no dia seguinte trazem.
Em casa, lembrei-me de uma pessoa que não comparecera ao bar. Era tarde: não iria ligar. Então mandei e-mail:
"oi, tudo bom? como tu tá? pq não foi?"
Um comentário:
Lendo o texto senti-me um anão desdentado e com fome, observando uma laranjeira muito alta e carregada.
Onde caralhos foram parar vocês?
Postar um comentário