quarta-feira, 12 de março de 2008

Estava eu... em frente à páginas em branco

Ter o word assim, aberto na minha frente, completamente em branco me olhando. Ou mesmo uma folha pautada qualquer, debruçada sobre a mesa em meio a lápis e caneta. O desafio de tornar aquilo humano é o suficiente para me tirar do real.

A busca pelo que já estava ali, sem ser percebido, imaculado pela correria ou pela falta de atenção. A sede de tirar o que me incomoda das entranhas e expulsa-lo para o mundo, sem qualquer vestimenta hipócrita ou adorno verbalizado. Transformar o verbo em sentido do movimento literário, alterar as sensações e comprometer os olhos dos desavisados.

Sempre tenho algo nas vísceras, uma opinião ou uma reclamação. Acho que humano é quem se relaciona consigo mesmo, e principalmente quem torna essa relação interessante.

E mesmo que algo me falte para molhar a ponta da língua, que o estômago vazio venha a impelir o vômito literário. Mesmo que sobre muito pouco de mim para dizer. Mesmo assim, dize-lo-ei, nem que seja para mim mesmo.

Sou um eterno rascunho de mim. A busca pelo original é uma eterna mentira.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Fab Four em Cachoeirinha

Olha, guri, acho que eu nunca te contei: ocorreu no final dos anos 60 e eu juro por Deus! Os Beatles estiveram em Cachoeirinha!

Quem os trouxe foi Thiago, fã e engenheiro de som deles desde que foi morar em Liverpool. Nessa época os Beatles andavam muito cansados de toda aquela loucura da "beatlemania", tanto que já há algum tempo haviam deixado de fazer apresentações, preferindo se dedicarem exclusivamente ao trabalho de composição. A idéia de ir para bem longe da Inglaterra e descansar um pouco viria a calhar. Não foi, portanto, tão difícil convencê-los a viajar para cá e permanecerem por quatro dias. Mesmo assim, a recomendação era a de virem para Cachoeirinha escondidos, sem divulgação alguma na imprensa, e de forma reservada para não chamar atenção. O Paul foi o único que exigiu certa dissuasão. Argumentava ele, preocupado: "Mas será que não vão nos reconhecer por lá, não?" Ao que o Thiago respondia sempre, confiante: "Ninguém vai saber, deixa quieto!" "Deixa quieto, Paul!" Aliás, nascia ali naquele instante a idéia para a composição de Let It Be.

Decididos, os quatro rapazes de Liverpool mais a Yoko (sim, ela insistiu em vir dizendo que tinha parentes em Gravataí) chegaram em Cachoeirinha numa sexta-feira, final de tarde. Que tranqueira!, tu não vai me acreditar. Mas chegaram bem os Fab Four e a oriental esquisita. O George e o Paul usavam perucas, os outros 3 boinas e chapéus, todos óculos. Foram instalados num hotel modesto, ali na esquina da Anápio Gomes, sabe? Onde o vô aqui caçava as tchanga... Mas o engraçado do tal hotel é que os atuais donos se vangloriam de terem hospedado o Quico do Chaves certa vez. O Quico falso, né?! Um mexicano que fazia show em circo. Hospedaram os Beatles e até hoje não perceberam...

Mas viu, ô guri. Olha aqui pro vô! Quê que eu tava falando mesmo? Ah tá...Aí tem umas coisas desses dias que eu me lembro porque eu era amigo do Thiago desde antes de ele ir pra Liverpool. E o que eu não sei por testemunho foi porque ele me contou. No mesmo dia em que chegaram, os visitantes quiseram aproveitar a noite pra conhecer a cidade. O Ringo por exemplo foi conhecer o Regina. Logo se enturmou com o pessoal e virou destaque no bailão. Até se enamorou por uma velha amiga minha que já falava inglês fluentemente na época, a Paula. Não lembro se a Paula correspondeu o interesse mas sei que gostou de conversar com ele. Trovaram, dançaram, trovaram, dançaram... E o mais engraçado não era tanto o rebolado desajeitado do Ringo, mas mais vê-lo tentar pronunciar "Nova Trento" e nunca conseguir.

O Paul se mandou pro Arca. Ouviu que haveria apresentação de uma banda local e, fominha por música como ele, quis conhecê-la. Era a Metamorfose que tocaria naquela noite em que a renda seria direcionada para as obras do Seu Noé. Paul só usava óculos escuros para disfarce mas mesmo assim passou despercebido. Detalhe que a Arlise, madrinha do teu pai, tava lá naquele dia e não o reconheceu. Imagina só! Depois de rolar a terceira música do show, Paul se entusiasmou e levantou da mesinha apertada junto ao palco para aplaudir a banda, o que chamou a atenção do Lula, guitarrista da Metamorfose. Show terminado e o músico local foi ao encontro do Macca:
- Meu, não sei se é porque tá muito escuro aqui mas tu é a cara do Paul McCartney!
- Paul? Paul is dead, man!
A piada pareceu sossegar a curiosidade do músico, que riu e se dirigiu ao bar do recinto: o típico humor inglês salvou um dos Beatles de um possível tumulto.

O John queria conhecer um pouco do astral da juventude cachoeirinhense e então decidiu-se por ir com o "grude" pro postinho na Del Rey do Thiago. Para incrementar o figurino e se confundir com os nativos vestiu uma camisa do Veranópolis e chinelo, sem esquecer de pôr no bolso o gravador onde costumava guardar possíveis idéias para novas canções. Ficou lá olhando para aquele pessoal ouvindo a todo volume algo que ele nomearia depois de "a lot of shit". "A lot of short dicks!", exortaria minutos depois John a Yoko, já entediada de tudo aquilo também. Iriam embora não fosse John olhar para um canto do postinho e perceber que uma alma autêntica se encontrava por ali, cantarolando algo alheio a toda àquela barulheira. Era o Zé Louco. O John se aproximou do Zé, que por sua vez notou que alguém vinha em sua direção. Eu nunca soube o que conversaram nem em que idioma se comunicaram mas sei que quem estava perto dali via faíscas e luzes rondarem aqueles dois. Algo transcendental ocorreu ali, guri... Algo além da nossa compreensão. Um pequeno trecho daquela conversa seria depois usada em Revolution #9. Pode ouvir, perto do minuto sete dá pra identificar bem...

Já o George... Bom, o George também queria conhecer um pouco da noite de Cachoeirinha, mas tropeçou num dos buracos das calçadas da Flores da Cunha e torceu o pé. Acabou voltando ao hotel e por lá ficou.

Chegava o quarto dia da passagem dos quatro rapazes de Liverpool em Cachoeirinha e eles haviam conseguido atingir seus dois objetivos: descansarem suas mentes e ocultarem suas identidades. Pouco antes da hora de voltarem à Inglaterra, no entanto, num lampejo de entusiasmo por uma apresentação unida à recém formada afeição pela pequena cidade da Grande Porto Alegre, decidiram pôr fim aos disfarces e presentear os locais. Sentiram que era hora de pôr fim àquele hiato com uma idéia genial! Um show, de surpresa, em cima do Barriga Verde! Foi assim: um instante e lá eles estavam no alto do prédio tocando o primeiro acorde de A Hard Day's Night. Das pessoas que passavam pela Flores da Cunha, primeiro, vinha o estranhamento; num instante, a surpresa e o reconhecimento de que eram mesmo os Beatles lá em cima; depois, a inevitável histeria das fãs enlouquecidas numa multidão que se formava. A Arlise e a Paula mesmo: ensandecidas, encharcadas com as próprias lágrimas e aos berros pelos quatro rapazes. Não fossem o Emerson e o Nuñes pra segurá-las e elas davam um jeito de escalar o prédio! Só não tava a tua vó lá, porque naquela mesma hora da tarde passava um especial do Jorge Ben na TV e ela não perderia "pra estrangeiro nenhum", palavras dela. Mas o resto da cidade... Bah, guri! Em cinco minutos e a notícia do acontecimento voou, lotando completamente a avenida. Tiveram até que chamar PM, claro, pra conter os mais exaltados. Foi uma tarde inesquecível, e aquelas 10 canções tocadas pelo Fab Four permaneceram e permanecem até hoje na cabeça dos que presenciaram o momento histórico...

Nos dias que se seguiram ao show e à volta dos Beatles à Europa, me lembro muito bem do clima nas escolas, nos escritórios, nas esquinas, em qualquer lugar desta cidade. Dando eco ao despretensioso trocadilho de John dias atrás no meio de uma canção, era estranho e bonito, todo mundo cantando baixinho: "Little Fall Forever".





Série especial de ônibus que a Vicasa pôs em circulação em 1970