sábado, 9 de agosto de 2008

Estavam eles.

Papai É O Maior

Prólogo

O amor que um torcedor dedica a um clube de futebol só pode ser compreendido por quem o sente, restando aos outros uma sensação de certa estranheza ou, por vezes, uma altiva incompreensão. Mesmo aos que compreendem, no entanto, é difícil a tarefa de uma explicação racional, que tente clarear em palavras tal fascínio, tal encanto que uma agremiação esportiva dedicada ao futebol, desperta no torcedor.

Não me utilizaria da expressão de Nélson Rodrigues, um apaixonado por futebol e pelo seu Fluminense, que chamaria os que pautam a vida no pragmatismo como "idiotas da objetividade" (o que, a esta altura da frase, já soa hipócrita, concedo), mas arrisco-me a apresentar ao leitor uma simples metáfora, que se não nos trará qualquer entediante interpretação antropológica aplicada às causas, trará, quem sabe, alguma compreensão sobre os efeitos deste fenômeno: o amor a um clube de futebol é como o amor a um filho.

Guardam-se na comparação, obviamente, as devidas proporções de importância de cada parte, fato inerente para a interpretação de qualquer metáfora. Meus argumentos: o amor que sentimos por um filho inclui uma instintiva e permanente torcida para que ele consiga alcançar todos seus objetivos e sonhos, sejam eles modestos ou grandiosos. Cada vitória conquistada, de uma prova de colégio a um concurso público; em uma entrevista para um concorrido emprego, em um campeonato de qualquer esporte, ou mesmo em um sorteio; seja a disputa baseada na própria superação ou na superação de outros concorrentes, tendo sorte ou competência como critério de escolha; todos esses sucessos são recebidos pelo pai (ou pela mãe) como sua. Como se ele próprio tivesse colhido os louros do triunfo obtido pelo filho. A felicidade do filho é a sua felicidade. Por outro lado, quando qualquer derrota ou insucesso ocorre, o pai toma para si boa parte da decepção do filho. Não como quem reclama ou critica, mas como quem se sente, também neste momento, na pele do filho. O amor do pai, contudo, independe de quantos foram os objetivos conquistados ou quantas foram as derrotas. É e será sempre o mesmo: abnegado e inabalável. Por conclusão, derrotas e mesmo as almejadas vitórias, são apenas acessórias ao sólido e estruturado amor de pai para filho.

O amor a um clube de futebol possui as mesmas implicações citadas no parágrafo anterior. Um torcedor devota carinho e admiração por seu time independentemente do sucesso deste pelos gramados. É certo que, também do lado de cá da metáfora, derrotas são sentidas e lamentadas, mas logo digeridas quando da compreensão de que se trata de, afinal, apenas um jogo. Grandes vitórias e títulos, por sua vez, vêm apenas enfeitar e pôr ainda mais em evidência o orgulho pelas cores do time. Mais uma vez, nota-se o sentimento da alegria do admirador pelo sucesso do admirado, como se o triunfo fosse, também, dele.

Evidentemente, existem alguns exemplos de desvios e excessos, quando o amor flerta demais com a paixão, e falta a consciência de que uma disputa precisa de perdedores para eleger vencedores. Entendo, entretanto, que tais distorções constituem apenas às exceções que confirmam minha teoria como regra. E se há melhor modo de fazer-se compreender como vejo o sentimento de amor a um clube de futebol, confesso que me falta método e competência para elaborá-lo.


I - Jornais, tintas e pincéis

Em geral, não era tão fácil ser brasileiro nos anos 70, quando corriam os chamados "Anos de Chumbo". Sobretudo se o sujeito simpatizasse com um líder trabalhista como Leonel Brizola, exilado à época no Uruguai. Cláudio Cavalheiro Gonçalves, brizolista convicto, teve no seu modo de vida discreto e não panfletário politicamente a garantia de segurança para si e para sua família, deparando-se apenas com as eventuais e protocolares vicissitudes na vida de qualquer pessoa, ao menos no que se refere à década de 1970. Portoalegrense, motorneiro, pintor-letrista, morava com a esposa e os filhos no bairro São João. Era fã de Nélson Gonçalves e do Sala de Redação. E gostava muito de futebol, o que aliás torna determinadas coincidências atraentes, por mais que continuem sendo apenas coincidências, como a que revela o fato de que nascera em 1930, ano em que foi organizada a primeira Copa do Mundo. Sua paixão pelo jogo de futebol, entretanto, não elegia seleção nacional alguma como capítulo principal, mas sim, o que conta sua ligação afetiva com o Sport Club Internacional.

Era muito fácil ser colorado nos anos 70. Na histórica e aparentemente inesgotável rivalidade esportiva entre o Intermacional e o Grêmio, o outro grande clube de futebol do estado do Rio Grande do Sul, o protagonismo muda quase que invariavelmente da mão de um para o outro. Gremistas e colorados, ano a ano, com raro tempero da vitória de uma terceira equipe, disputam a supremacia regional. Até a metade dos anos 70, o título do Campeonato Gaúcho representava o limite do que os times daqui conseguiam conquistar. É nesse cenário que Cláudio vê grandes momentos do seu Colorado. Acompanhando todas as partidas do Inter quanto pudesse, tinha no radinho uma parceria inseparável, seja quando ao Beira-Rio fosse, seja quando escolhesse torcer em casa, na companhia da família.

Do Beira-Rio presenciou a gestação e o nascimento. Foi um dos muitos colorados a acompanhar e a ajudar na construção do estádio, quando cada tijolinho ou saco de cimento doados eram um pequeno regalo motivado pelo amor ao clube alvirrubro. Além de torcer, muitas foram as vezes em que fora ao estádio também incrementar a renda da família, vendendo faixas, bandeiras e toda sorte de materiais relacionados ao Inter antes dos jogos. Desse ofício, inclusive, surge episódio pitoresco que convém contar. Era dezembro de 1975 e o Inter decidia o título nacional no Beira-Rio contra o Cruzeiro de Minas Gerais. Apreensivo como apaixonado colorado e responsável como dedicado pai de família chegou cedo ao estádio para vender seus artigos de torcida. O entusiasmo que a final inédita causava refletiu em boas vendas nesse dia, mas o verão gaúcho cobrou seu preço quando Cláudio deu por encerradas as vendas e, perto do início da partida, passou a portar-se exclusivamente como mais um esperançoso colorado. O estádio estava lotado e achar um lugar nas arquibancadas no meio da multidão, ainda mais carregando o material que não fora vendido, era tarefa difícil, restando para Cláudio não mais que um lugar apertado atrás de uma das goleiras, onde ficaria exposto frontalmente ao sol forte. Era o caso de se lamentar profundamente acompanhar aquele jogo histórico em tais condições. Mas o final da tarde se aproximava com o segundo tempo da decisão, e o sol começava a se pôr, esquivando sua luz para fora do estádio. Restava, porém, bem à frente de onde Cláudio estava, um único feixe de luz, que alcançava o gramado através de uma janela do alto do Beira-Rio, projetando-se no exato espaço onde o zagueiro Figueroa subiria para fazer de cabeça o gol do campeonato. Era o que seria lembrado depois como o "gol iluminado". Era o gol do título brasileiro.

Falar da família de Cláudio, ao menos futebolisticamente, é continuar falando, majoritariamente, do Internacional. Não se sabe bem se por influência ativa do pai dedicado ou meramente por uma espécie de determinismo causado pelo ambiente, mas o fato é que não só Ariocilda, sua esposa, era colorada, como também os filhos José Júlio, Alice, Lúcia Helena, Elizabete, Leonel e Neusa também o eram. Somam-se ainda a Ana Cláudia e a Vera Maria, que viriam a nascer no decorrer dos anos 70, mas que em algum momento seguiriam a mesma predileção clubística do pai e seriam torcedoras do Inter. Mas... Mas "majoritário" nunca quis dizer "unânime". O grupo de nove irmãos completa-se com o Moacir.


II - Meu coração por um doce

As circunstâncias da escolha de Moacir pelo Grêmio são incertas. No entanto, sendo baseada em algo de factual ou fruto apenas do maldizer de seus irmãos colorados, reza a lenda que seu coração era vermelho e branco mas transformou-se em tricolor sob a sedução de um doce. O rapazinho Moacir tinha em seus poucos cinco ou seis anos a razão de porque teria sido uma presa fácil. A aliciadora, por assim dizer, atendia por Dona Marica, uma gremista fervorosa cujos netos, já crescidos, tomavam conta de uma confeitaria vizinha à casa dos Gonçalves.

O jovem Moacir prestava pequenos serviços ao estabelecimento, recebendo, em troca, alguns trocados ou doces. Conta a versão "colorada" da história que certa vez Dona Marica, aproveitando-se do ofício dos netos e do interesse juvenil de Moacir, mexeu com a cabeça do menino.

Corruptora Dona Marica, conforme o relato, ao escolher a moeda do suborno valeu-se de massa folhada, certa quantidade de gemas de ovos, farinha de trigo, leite, margarina, baunilha, sal e açúcar. Com efeito e algum esmero, tinha-se então o produto, conhecido não só à época mas também atualmente como "mil folhas", e ante ao qual o pequeno Moacir teria fraquejado.

Mas pode não ter sido nada disso, e o sentimento de Moacir pelo Grêmio seja apenas mais uma prova do quão difícil é procurar qualquer tipo de explicação fácil para o amor ao futebol, que nesse caso, não teria encontrado resistências no ambiente natural e predominantemente, para ele, adverso.


III - Dois gigantes, apenas uma taça.

Não era fácil ser gremista na década de 70. A supremacia estadual parecia obedecer a um revezamento, e parecia haver chegado novamente a vez do Internacional. Viria a substituir uma outra, neste caso tricolor, que dominou o futebol gaúcho nos anos 60. De 1962 a 1968 o Grêmio conquistou todos os títulos, construindo o heptacampeonato. A série consecutiva superava o recorde anterior do Internacional, obtido entre 1940 e 1945 com seis títulos seguidos, e por uma equipe que viria a ser consagrada como o "Rolo Compressor".

O domínio gremista terminou em 1969, ano da inauguração do Beira-Rio, quando o Inter reconquistou o título gaúcho depois de sete longos anos. O que parecia aos olhos dos apaixonados gremistas como apenas um hiato em sua seqüência vitoriosa, porém, não se confirmou. O Internacional ganharia também os títulos de 1970, 1971, 1972, 1973, 1974, 1975 e 1976, formando uma série ainda maior de títulos: o octacampeonato. O bicampeonato nacional do Inter, construído em 75 e 76, traria ainda um título inédito até então para os clubes gaúchos. No grande caldeirão de emoções que envolve a paixão pelo futebol, a rivalidade é um dos mais fortes ingredientes. Nessa relação em particular, definitivamente, não era fácil ser gremista.

Não era fácil para Moacir, em que cuja passagem da infância para a adolescência atravessaram-se os anos de jejum de seu time do coração. As gozações e os deboches na escola, por vezes, resultavam em algum atrito. A provocação em casa também existia, vinda de seus irmãos. Mas não vinha de seu pai. Cláudio não era dado à parte da rivalidade fundamentada nas "flautas" ao adversário, no deboche aos derrotados, o que, em doses controladas, é visto até com bons olhos pela maioria. Em seu caso, a satisfação de ver seu time jogar era combustível suficiente para manter o antigo amor ao clube. Aqui tínhamos um caso onde o amor sobrepõe-se ao viés mais radical da paixão, que com rédeas soltas (vemos hoje e cada vez mais), às vezes acabam em exaltações de ânimo, brigas e inimizades. E se Cláudio optava não ser assim mesmo com seus colegas de trabalho, menos ainda seria com um de seus filhos. Exageros nas brincadeiras entre os irmãos, inclusive, eram fiscalizadas e controladas pelo próprio Cláudio, que nessa jurisdição adotava exemplar neutralidade.


IV - Por Uma Cambalhota

O ano era 1977 e os maiores favoritos ao título gaúcho eram os mesmos de sempre: a dupla Grenal. Mas a série ininterrupta de oito títulos colorados trazia um certo favoritismo ao Internacional, o que veio se confirmar ao final do primeiro turno do campeonato, vencido pela equipe alvirrubra. O Grêmio, porém, mostrou-se determinado a acabar com os anos de jejum ao vencer o segundo e o terceiro turnos, levando para o estádio Olímpico a grande decisão do título.

Na vida de qualquer amante do futebol, dia de final de campeonato com o clube de coração envolvido é dia de certa ansiedade e expectativa. Quando se tem na partida final um clássico como o Grenal, o envolvimento torna-se inevitavelmente ainda maior. Não era diferente na casa de Cláudio, não obstante ele já ter herdado dos anos vividos e dos muitos jogos, a sabedoria que talvez falte a uma criança ou um adolescente, a de perceber-se que, seja qual for o resultado, trata-se apenas de um jogo. No solitário lado gremista, Moacir principiava justamente a sua passagem pela adolescência, o que explica que ainda não tivesse, pela ainda pouca idade, a devida ciência de equilíbrio no choque entre uma disputa esportiva, a paixão e suas implicações. Natural então porque fremia-se de expectativa, esperando ser esta a vez do Grêmio, a sua vez, a sua vitória. Não mais as campanhas insuficientes para que fossem dele e de seu time o triunfo. Desejava, Moacir, e talvez acreditasse ser quem mais pudesse desejar, que finalmente seria seu o sorriso e a euforia dos orgulhosamente vitoriosos.

Iniciado o Grenal que decidia o título de 1977, o radinho repousava sobre a mesa da sala dos Gonçalves a contar cada lance da grande final para atenta audiência. Cada um a imaginar os chutes a gol, as faltas, as defesas, os passes narrados pelo locutor esportivo. A certa instância do jogo irrompe na casa um grito. Vinha do rádio, mas logo viria também de alguém naquela casa. Era o gol do Grêmio, era o gol de André Catimba, era o gol do título gaúcho de 77 para a equipe tricolor. Anunciado o fim da partida, a euforia que em hipótese alguma seria unânime tomou conta do lado menos numeroso. Moacir vibrava tomado da mais genuína felicidade e soltava o grito de orgulho que há tanto tempo esperava uma ocasião de triunfo. Era a festa do Grêmio, oito anos depois. Era a festa do jovem Moacir, apaixonado gremista campeão.

Tanta era a felicidade, que não notou de pronto, no meio da espontânea inebriação do êxtase, quando o pai de Moacir dirigiu-se a ele. Tomando consciência pode ouvir do velho Cláudio:

- Vamos!
- Vamos aonde?, perguntou o pequeno Moacir, coração a ponto de fugir-lhe do peito.
- Para a Benjamim, ora! Pega tua bandeira para ir comemorar!

E foram então os dois para a Benjamim Constant. Moacir de mãos dadas com o pai, bandeira tricolor na mão a tremular e fita alusiva ao título na cabeça.

Um dia memorável para Moacir. Histórico para o jovem torcedor e inesquecível para o filho. Filho que por muito e muito tempo, se possível por todo o sempre, cantaria convicto de ter toda a razão, sem medo algum de ferir seu amor pelo Grêmio, que "Papai é o maior, papai é que é o tal".

Feliz Dia dos Pais.



(Baseado, com adaptações, em fatos
reais. Cláudio é meu avô e Moacir é meu
padrinho. É só coincidência, mas contemplemos
o encanto do subjetivismo: Moacir é a cara do
Renato Portaluppi, nome dos gols mais
importantes da história do Grêmio.
Sigamos com as reverências do
espirituoso acaso: Meu avô faleceu em
17/12/1996. Exatos 10 anos depois, como
em um tributo dedicado a um de seus mais
apaixonados torcedores, o Inter conquistou o
Mundo.
Coincidências.)

PS: depois de investigação velada durante vários
dias, aos 45 minutos do segundo tempo, surgiu a
versão do co-protagonista da história que conta não
ser o fim do jejum gremista, mas sim a conquista
do hepta em 1968, o pano de fundo para a história
relatada. Foram fontes discordantes e não o meu
coloradismo tentando inverter as coisas, acreditem!
Mesmo assim, o texto continuaria a ser uma adaptação
sob o fato mais importante. O que, de fato, aconteceu.